Arquivo do mês: julho 2015

A legitimidade das OSCs em questão

Imagem Post Jul 2015Há mais de 20 anos, o Betinho (Herbert de Souza) foi capa da revista Veja. Isso no inicio da década de 1990. Tempo bom… As OSCs gozavam então de positiva apreciação geral. Sua legitimidade não era questionada. Elas eram consideradas uma boa representação do “fazer o bem”. A percepção pública dominante era de que os valores promovidos por essas organizações – solidariedade, justiça, participação, respeito à natureza, etc. -, eram positivos e até mesmo necessários para o avanço da sociedade brasileira.

Alguns fatores ajudam a compreender aquela situação virtualmente positiva quanto à legitimidade das OSCs. Arrisco aqui mencionar dois brevemente: (i) o fato de que as OSCs tinham na cooperação internacional sua principal fonte de sustentação financeira, sem vínculo importante com os recursos governamentais ou corporativos, conferia-lhes grande autonomia e liberdade de atuação, favorecendo seu relativo “descolamento” da sociedade brasileira – i.e., elas não dependiam do governo, da sociedade civil, da mídia, da academia, etc. para serem legítimas; sua principal fonte de legitimidade estava fora do país; e (ii) naquele contexto político nacional, as OSCs em geral pareciam não ter opositores ou “inimigos” declarados. Quem, afinal, se oporia abertamente a quem “faz o bem” e não usa recursos públicos para tal!? Os eventuais conflitos locais e mesmo nacionais em certos campos de disputa (ex.: meio ambiente, povos indígenas) poucas vezes transbordavam para o espaço público nacional como um embate estratégico entre campos com visões, interesses e compromissos políticos, econômicos e sociais diametralmente diferentes.

A hipótese aqui discutida é a de que a legitimidade das OSCs entre os anos 1980 e 90 no Brasil baseou-se numa representação coletiva genérica na qual elas surgiam como o “bem”, associada com o fato de que elas não tinham ainda construído capacidade de desafiar os interesses econômicos e políticos dominantes no país, com a expressão disso no espaço público.

Com o advento do governo Lula, a partir de 2003, isso tudo mudou. O fato de ter-se no governo federal uma coalizão progressista, liderada por um partido então identificado com uma visão de Esquerda, desafiou as forças conservadoras, dentro e fora do governo. Tudo virou matéria de disputa, na mídia, na sociedade civil, no governo, e as OSCs foram deixando o “limbo” onde estavam para serem percebidas como atores interessados no jogo político. Os recursos federais passaram a ser fonte importante de sustentação destas organizações. A revista Veja passou a publicar escândalos envolvendo organizações nem tão sérias. Rompeu-se a percepção pública de certa neutralidade, de fazer o bem como algo acima dos conflitos reais. Não mais…

Isto colocou um enorme desafio político-cultural para as OSCs: se antes sua legitimidade era passiva, vinculada fortemente com o exterior e baseada numa associação genérica com o “fazer o bem”, agora elas descobriam a duras penas que sua legitimidade no novo contexto teria de ser construída ou, pior ainda, disputada continuamente na sociedade brasileira.

O elemento novo de fundo nesta transformação é o fato de que a legitimidade (assim como a identidade) só pode ser compreendida de forma relacional, situacional. Ela nunca é dada, é sempre relativa à situação e às circunstâncias mutantes dos sujeitos em questão. É desafio estratégico e construção permanente.

Este desafio pode ser enunciado como o imperativo de que as OSCs, cada uma em particular e todas elas como campo ético-político, têm de construir e disputar sua legitimidade, individual e coletiva, no espaço público. Mais diretamente: a legitimidade das OSCs tem de navegar pelas águas turbulentas da pluralidade de conflitos característicos da democracia. Diferentemente dos anos 1980 e 90, elas precisam buscar vínculos, energia e reconhecimento nas relações e conexões com a sociedade brasileira, na sua diversidade de visões e de interesses. Para se legitimar, elas devem travar o bom combate do diálogo, da escuta, da comunicação e da articulação com forças e setores relevantes do debate público.

A boa notícia é que, ao lutar por sua legitimidade, as OSCs estarão promovendo concomitantemente o avanço da democracia e de valores como direitos, diversidade, solidariedade, justiça social e ambiental. Isto porque elas só serão mais reconhecidas, apoiadas e legítimas, na medida em que persuadirem setores consideráveis da sociedade e do governo a validarem seu valor e contribuição social.

A notícia ruim é que muitas OSCs ainda têm dificuldade de compreender a natureza totalmente diversa do novo contexto de sua sustentabilidade e legitimidade. E, mesmo compreendendo, enfrentam sérios entraves, internos e externos, neste caminho.

Outra notícia ruim é que os termos das relações de apoio e financiamento atuais tendem a erodir as condições de autonomia das organizações. Para citar apenas um aspecto, porém crucial, observe-se a falta de tempo para autoria nos processos de trabalho, dado o imperativo de perseguir as metas acordadas…

Para as OSCS, perder autonomia e autoria é perder quase tudo; é perder a condição ético-política de ser sociedade civil – ser capaz de existir de forma autônoma e livre para contribuir com o avanço da democracia e da sociedade.

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